segunda-feira, 7 de maio de 2012

Declaração de amor eterno e confiança e orgulho incondicionais

(No final de 2011, às vésperas da formatura e do intercâmbio da Mari, o colégio dela pediu que os pais escrevessem uma carta para ser entregue aos filhos. Resolvi fazer a minha em forma de petição.)


ILUSTRÍSSIMA SENHORITA MINHA FILHA

  

CAROLINE CANOZZI BITTENCOURT, também denominada mãe da Mari e/ou Tchaca Rol, vem, respeitosa e carinhosamente, falando em nome de seu coração, órgão desprovido de voz e gestos próprios, à presença de Vossa Senhoria, apresentar esta DECLARAÇÃO DE AMOR ETERNO E CONFIANÇA E ORGULHO INCONDICIONAIS pelos fatos e fundamentos que passa a expor:


 DOS FATOS

Tudo começou em 1994, ano em que o Brasil se tornou Tetracampeão Mundial de Futebol e que Ayrton Senna, então o maior ídolo nacional, não resistiu a um acidente fatal.

Era época pré-internet e redes sociais, e o mundo de um adolescente se resumia a sua família, amigos de escola e agregados.

Foi então que a Autora, então com 14 anos de idade, descobriu-se gerando um bebê, o que causou alguma (mas não muita) surpresa em seu meio social.

Considerando que tal fato não se tratava exatamente de uma novidade na família da Autora, não houve sobressaltos ou desesperos.

Passado o impacto inicial, a gestação foi encarada com tranqüilidade por todos, principalmente pela Autora, que desde então acreditou ser predestinada para a maternidade precoce.

Enquanto organizava-se uma bolsa de apostas sobre qual seria o sexo do bebê, a Autora se esquivava de responder aos questionamentos acerca de sua intuição, temendo equivocar-se e preterir a opção correta. No entanto, intimamente, soube desde o princípio que se tratava de uma menina.

Após os festejos pelos 15 anos da Autora, em uma festa tida por muitos como a melhor comemoração do gênero naquela temporada, na qual a Autora começou a noite com um elegante vestido de veludo e crepe azul marinho, substituído poucas horas depois pelo indefectível macacão jeans, todas as atenções se voltaram exclusivamente à preparação para a chegada do bebê.

Na noite do dia 25 de setembro, então, um domingo abafado e chuvoso, no momento em que milhares de pessoas no país assistiam ao Fantástico na TV, a Autora foi protagonista do fantástico milagre da vida, deixando, contudo, de ser protagonista de sua própria existência.

Naquela noite, veio ao mundo sua tão esperada e já amada filha, a quem foi dado o nome de Mariana, por ser o nome mais bonito que a Autora então conhecia, opinião esta que perdura até os dias de hoje.

Pois Mariana nasceu saudável, pequena e delicada, enchendo de alegria a todos que a aguardavam lotando o nono andar do Hospital São Lucas da PUCRS.

A Autora não conseguiu fechar os olhos durante a madrugada que se seguiu, parte por temor de não acordar em razão de eventual protesto do pequeno ser que repousava a seu lado, parte por absoluto encantamento diante da concretização da imagem por meses imaginada.

Mal sabia a Autora, no entanto, que aquela seria a última noite em muitos e muitos meses em que poderia ter desfrutado de sono ininterrupto, pois a partir de então se iniciou uma seqüência de madrugadas insones, nas quais Mariana solicitava atenção e alimentação constantes.

Tais exigências, entretanto, não causavam descontentamento algum. Pelo contrário, eram atendidas com paciência e dedicação extremas, surpreendendo a todos aqueles que duvidavam da capacidade da então adolescente de dar conta de suas novas atribuições.

Apesar de não ter sido um período fácil, jamais houve reclamações ou arrependimentos, pois a felicidade que a Autora sentia em ser mãe de Mariana superava qualquer dificuldade porventura sofrida.

A menina foi crescendo e evoluindo da melhor forma possível, saudável, meiga, inteligente, simpática e linda, encantando a todos a sua volta, sem que jamais tenha provocado decepções ou maiores angústias em sua família, salvo aquelas inerentes às preocupações normalmente sentidas.

Sempre se mostrou compreensiva e companheira, interessando-se pelos assuntos e pelas pessoas que a cercavam, não tendo sucumbido nem mesmo quando do nascimento de seu irmão, fato este que costuma ensejar dissabores e rivalidade em grande parte das famílias, mas não na da Autora.

Com o passar do tempo, Mariana foi aprimorando suas características, moldando sua personalidade e amadurecendo de forma serena e equilibrada, mesmo quando fatos não desejados vieram a ocorrer, diante dos quais reagiu da forma tranqüila que lhe é peculiar, não sem certa dose de eventual e normal dramatização, pois se trata de ser humano portador de sangue e coração, por mais que costume aparentar tratar-se de ser superior.

Ao longo da vida, mostrou-se amiga leal, bailarina excepcionalmente graciosa, aluna responsável, irmã cuidadosa, neta e sobrinha carinhosa, filha exemplar e pessoa equilibrada, consciente de seu papel em seu meio e no mundo, engajada em fazer sua parte para que as relações se tornem cada vez mais harmônicas e satisfatórias.

Prestes a encerrar uma importante etapa e iniciar uma outra, ainda mais relevante, pois delineará o contorno de sua vida adulta e profissional, Mariana vem enchendo sua mãe, ora Autora, de sensações complementares e, por vezes, contraditórias de orgulho e preocupação.

Cabe ressaltar que não se trata de ausência de confiança em sua capacidade de definir metas e traçar os respectivos caminhos, mas apenas receio de que ao soltar as bordas da cerca de proteção que a acompanha há mais de 17 anos, Mariana venha a se ferir com as pedras e os buracos que a estrada que a espera possam apresentar, sem que a Autora esteja suficientemente próxima para que a socorra com a presteza necessária.

Muito embora a Autora tenha conhecimento de que a vida é feita de acertos e erros e de que não há crescimento sem sofrimento e desilusões, mostra-se extremamente penosa a tarefa de permitir que sua filha tome as rédeas da própria vida e se responsabilize pelas escolhas iminentes, principalmente diante da longa viagem de estudos vindoura, situação que tem provocado constantes calafrios camuflados de empolgação.

Cabe à Autora, neste momento, bem como nos demais momentos em que se depara com a chance de proporcionar e estimular experiências singulares a Mariana, assim como dedemonstrar a confiança na capacidade de discernimento de sua primogênita e na educação por si alicerçada ao longo dos últimos 17 anos, entregar à sua filha a titularidade de sua própria vida por meio da presente Declaração de Amor Eterno e Confiança e Orgulho Incondicionais, acompanhada das recomendações de praxe, o que faz de forma solene, mas não menos amorosa.


DOS FUNDAMENTOS

O Manual das Mães, devidamente registrado no Tabelionato do Senso Comum e Consciente Coletivo, assim dispõe:

 Art. 1º. É dever de toda mãe amar a seus filhos acima de todas as coisas e conferir aos mesmos o topo da escala de prioridades em sua vida, empenhando-se além de suas possibilidades para que a felicidade de seus rebentos esteja garantida.
Parágrafo 1º. O descumprimento do acima disposto implicará em culpa eterna e incurável.
Parágrafo 2º. A permanente tentativa de cumprimento também poderá implicar em culpa eterna e incurável.

Sendo assim, é atribuição exclusiva e intransferível da Autora o compromisso de proporcionar a sua filha todos os elementos necessários à concretização de seus projetos e busca pela realização e felicidade, sob pena de ser atingida pelo doloroso peso da culpa materna, sabidamente inafastável, mas objeto de constante fuga.

Resta à Autora, portanto, conformar-se com a diminuição de sua área de atuação nas esferas de controle e interferência na vida da filha, dando a esta a possibilidade de desenvolver-se de forma livre, consciente e responsável, tudo graças ao sistema de confiança até então desenvolvido, segundo o qual todo e qualquer assunto pode ser abordado abertamente, em que pese alguns tópicos ensejem certa polêmica.

Enquanto isso, caberá à filha a assunção do bastão de titular de sua própria vida, bem como o compromisso com o aumento do senso de auto-responsabilização pelas escolhas feitas a partir de então, ficando ciente, desde já, que em caso de apuros poderá acionar a Autora para lamentar-se e solicitar auxílio, sem necessariamente esperar por soluções mágicas, as quais não são passíveis de disponibilização instantânea.

Por fim, a Autora declara-se absolutamente confiante na capacidade da filha na direção de seus atos, mostrando-se ainda imensamente orgulhosa diante do empenho argumentativo verificado em diversas situações já vividas por ambas, razões pelas quais reitera todo seu amor à pessoa que ocupa posição inabalável no coração materno.


DOS PEDIDOS

DIANTE DO EXPOSTO, REQUER:

 a) o recebimento da presente Declaração de Amor Eterno e Orgulho e Confiança Incondicionais, para que surta os efeitos manifestos e esperados;

b) o reconhecimento por parte de Vossa Senhoria de que a Autora não toma atitude alguma sem ponderar sobre as conseqüências sobre seus filhos, e que eventuais equívocos serão objeto de incessantes tentativas de correção;

c) que a presente declaração sirva como base de apoio para as atitudes a ser tomadas a partir de então, restando à filha o compromisso de zelar por sua segurança acima de tudo, sob pena de cassação dos poderes agora conferidos, mesmo após a maioridade civil;

d) a continuidade da relação de amor e confiança sempre mantida entre mãe e filha, com a certeza de que independentemente de compromissos, promessas e declarações, nada será capaz de abalar os vínculos ou romper os laços mais fortes já experimentados pela Autora, sem os quais não haveria razão para continuar vivendo.

Dá-se à causa o infinito valor do amor.

Nestes termos, pede e espera deferimento.

Porto Alegre, 06 de dezembro de 2011.

Caroline Canozzi Bittencourt, Mãe

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